Ricardo Reis: o “cidadão de bem” na obra de Saramago
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No romance O ano da morte de Ricardo Reis, publicado em 1984 por José Saramago, o heterônimo de Fernando Pessoa que dá nome ao livro é personificado, ganha corpo, alma e personalidade. Sai do Brasil, onde viveu por 16 anos, e retorna à Lisboa. Era a década de 1930: época em que se inicia a ebulição do fascismo na Europa, inclusive em Portugal, na pessoa de António Salazar. Ricardo Reis surge nesta trama que tem o cenário político como pano de fundo, mas parece alheio aos acontecimentos. É o típico “cidadão de bem”: um burguês que sequer precisa trabalhar - um fidalgo -, um homem que se considera um intelectual, médico e poeta, honrado, mas que não exita em evitar assumir o filho que faz em uma “criada”, tratada sempre com inferioridade - sua única companhia, mas não considerada boa o bastante para casar devido à classe social.
Já na epígrafe do livro, uma frase de Bernardo Soares parece definir bem o caráter de Ricardo Reis:
“Escolher modos de não agir foi sempre a atenção e o escrúpulo da minha vida”.
Nesta obra de Saramago, Reis é descrito como “um espectador do espetáculo do mundo, sábio se isso for sabedoria, alheio e indiferente por educação e atitude, mas trêmulo porque uma simples nuvem passou”.
Nesta história, Reis - um homem, não um heterônimo - , retorna a Portugal após receber uma mensagem de Álvaro de Campos - também personificado -, informando sobre a morte de Fernando Pessoa. Não chega a tempo do velório, mas acompanha as notícias pelos jornais e lamenta o falecimento do grande poeta, de quem aparenta ser íntimo. Comenta um trecho de notícia em que se lê:
“Fernando Pessoa, ele era também Álvaro de Campos, e Alberto Caeiro, e Ricardo Reis, pronto, já cá faltava o erro, a desatenção, o escrever por ouvir dizer, quando muito bem sabemos, nós, que Ricardo Reis é sim este homem que está lendo o jornal com seus próprios olhos abertos e vivos”.
Pouco tempo após se instalar em um hotel em Lisboa, Reis passa a receber visitas de Pessoa, este já morto, mas que dizia ainda poder circular. Pessoa também comenta o caráter do médico: “Você, Reis, tem sina de andar a fugir de revoluções, em mil novecentos e dezanove foi para o Brasil por causa de uma que falhou, agora foge do Brasil por causa de outra que, provavelmente, falhou também”.
O que Reis não esperava era que também encontraria Portugal prestes a uma nova revolução. Mas seu espírito não é combativo: é um homem acomodado e que ignora a realidade local, especialmente a das classes menos favorecidas. Na posição de “cidadão de bem”, o que quer é a ordem e, mesmo que inconscientemente, ou não declaradamente, que privilégios de pessoas como ele sejam mantidos. Como descreveu Eduardo Galeano, é comum às direitas a identificação com a ordem e a tranquilidade: “A ordem é a diuturna humilhação das maiorias, mas sempre é uma ordem - a tranquilidade de que a justiça siga sendo injusta e a fome faminta”.
Maria Elena Pinheiro Maia em “A ficção e a história em O ano da morte de Ricardo Reis de José Saramago: Ricardo Reis diante do espetáculo do mundo” explica que, mais que o personagem, é o contexto histórico o foco do livro: “Pelo título percebemos que a tônica do romance é o ano da morte [1936] e não sua personagem. Portanto interessa-nos saber quais foram os fatos históricos ocorridos nesse período e de que maneira foram tratados pelo autor”.
Os fatos estão presentes, particularmente na visão de Ricardo Reis. Há, em suas falas, uma consciência de superioridade, a opinião de que “povo nada vale se não for orientado por uma elite”.
“Em toda a sua vida, Ricardo Reis nunca assistiu a um comício político. A causa desta cultivada ignorância estará nas particularidades do seu temperamento, na educação que recebeu, nos gostos clássicos para que se inclinou”.
Em certo momento do livro, ele reflete que “se arrependia de se ter declarado antisocialista, antidemocrata, antibolchevista por acréscimo, não porque não fosse isto tudo, ponto por ponto, mas porque se sentia cansado de nacionalismo tão hiperbólico”. Em outro trecho, recorda que “ele próprio é monárquico”.
No decorrer da trama, ficamos sabendo da ascensão e queda de um governo de esquerda na Espanha; do crescimento do Reich e de Adolf Hitler como grande expoente do “novo regime político” que passa a ganhar espaço na Europa; e do poder de Benito Mussolini na Itália. Estes modelos fascistas de governo adentram Portugal, se tornam exemplo, parecem, na visão de Reis, conquistar as massas.
É neste cenário que o protagonista demonstra simpatia a este regime - “devíamos era aprender com os ditos alemães” -, e uma visão de inferioridade de Portugal em relação aos governos de países próximos:
“Que irão dizer da nossa civilização portuguesa estes trabalhadores arianos, filhos de tão apurada raça, que estarão eles pensando agora mesmo dos labregos que param para os ver passar, aquele homem moreno, de gabardina clara, estes dois de barba crescida, mal vestidos e sujos.”
Com a mesma admiração com que vê o nazismo, parece aprovar Salazar, descrito como “sábio homem, esse ditador todo paternal” . Essa posição condescendente da elite fica clara nos diálogos de Reis e Pessoa sobre Salazar. Demonstram saber da censura, da propaganda - ou seja, que notícias eram manipuladas -, da fome no país, da repressão policial promovida pelo governo, mas nem assim há um posicionamento contrário ao regime.
Diz-se em certo trecho: “diga-me se não acha inquietadora esta novidade portuguesa e alemã de utilizar Deus como avalista político”. Aqui fica evidente que pode até haver certo senso crítico por parte de Reis, mas não capaz de o fazer reagir. Pelo contrário, avalia que “a virtude definitiva do patriotismo absolve todas as contradições”.
Neste momento de efervescência política, Reis começa a pensar em retornar ao Brasil, mas termina por partir com Fernando Pessoa. Como avalia Maia, “Reis lutará até o final para permanecer impassível diante de todos os acontecimentos”
Se esta visão acomodada ou despolitizada cabe perfeitamente na personalidade de Ricardo Reis, também revela, de outro lado, um certa ironia no modo de escrita de Saramago, que demonstra toda a inércia deste nosso protagonista e da sociedade em geral, especialmente a elite, sobre os riscos que a ascensão do fascismo trazia.
Para Maia, Saramago demonstra uma visão crítica e consciente do passado. Ela também ressalta que apesar de ter o cenário político como pano de fundo que, por muitas vezes, sai das sombras, não é objetivo do discurso literário documentar a história: “Ele não se confunde com o discurso histórico, pois possui regras próprias que o tornam um outro discurso e sua preocupação não é com a verdade documentada”.
*Essa resenha crítica foi elaborada no curso de Letras - Língua Portuguesa e Literaturas da Universidade Federal de Santa Catarina.
Conteúdo extra
1 - Texto da Fabiane Guimarães (e a newsletter dela) sobre se assumir escritora
3 -As Donas da P* Toda conversaram com a Mônica Benício, viúva da Marielle
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