Livros de não-ficção e um universo a ser explorado
Obras de Pedro Lemembel, Orna Donath e Isabel Wilkerson falam sobre coisas que precisam ser ditas
A leitura de livros de não-ficção nem sempre é atraente. Em meio a histórias inventadas, algumas fabulosas e divertidas, ler sobre vida real pode ser custoso. Mas, como uma pessoa que ama saber sobre coisas que existem, recomendo alguns títulos que me encantaram não só pelos assuntos que tratam, mas pela qualidade textual e pelo impacto que me causaram.
“Poco hombre: Escritos de uma bicha terceiro-mundista”
Livro do chileno Pedro Lemembel, publicado há pouquíssimo tempo no Brasil. A oralidade é central nessa obra que reúne crônicas do artista que começou a escrever depois dos 30 anos confrontando a ditadura e uma sociedade homofóbica e machista. O texto de Lemembel é poético, irônico, por vezes ácido, e calculadamente incômodo.
Ele escreve sobre sua própria existência como bicha (o escritor preferia o termo a usar a palavra gay por considerá-la um estrangeirismo incapaz de conceber a homossexualidade latina-americana). A sexualidade e gênero aparecem em seu texto autêntico como um reclame de sua própria existência.
“Eu poderia escrever com clareza, poderia escrever sem tantas firulas, sem tanto redemoinho inútil. Poderia melhorar o idioma enfiando no rabo minhas metáforas corroídas, meus desejos asquerosos, minha cabeça pervertida de mariluz ou marisombra […] para que o mundo me torne global, exportável, traduzível até para o aramaico, que para mim soa como um peido florido. […] Mas eu não me chamo assim, inventei um nome para mim com levada de tango maricueca, bolero roquenroll ou vedete travestona”.
Pode ser que você imagine que se tratem de crônicas panfletárias, mas isso certamente diz mais sobre as referências e preconceitos de quem lê do que sobre a escrita de Lemebel. (Nós estamos sorteando esse livro e o "Rainhas da Noite", do Chico Felitti. Corre que ainda dá tempo).
Se você quiser ouvir em espanhol, recomendo o podcast da Radio Qué Leo: Homenaje a Pedro Lemembel 2015.
Se tem algo que já me tirou o sono diversas vezes é a maternidade. A minha (que não existe) e a dos outros. Se a decisão ou dúvida é por vezes solitária, quem dirá o arrependimento. A mulher que se anuncia arrependida da maternidade torna-se a maior das pecadoras nessa terra.
A pesquisadora israelense Orna Donath escreveu esse livro a partir de uma dissertação de mestrado na qual entrevistou mães que demonstram arrependimento. Isso não significa que não exista amor, apenas que a maternidade vem carregada de bagagens e barreiras que muitas não conseguem mais lidar. Mulheres são seres humanos.
Conheci esse livro em uma entrevista da atriz Maeve Jinkings para a Gama Revista, na qual ela fala sobre não querer ser mãe. Comprei o livro na mesma hora e comecei a ler.
"[…] quando personalizamos o arrependimento como a incapacidade de se adaptar à maternidade, como se essa determinada mãe tivesse que se esforçar mais, estamos esquecendo como diversas sociedades ocidentais tratam as mulheres, ou, talvez mais precisamente, como ignoram as mulheres, uma vez que as sociedades parecem se eximir da culpa por empurrar veementemente todas as mulheres consideradas física e emocionalmente saudáveis não apenas para a maternidade, mas também para a solidão de lidar com as consequências dessa persuasão”.
“Casta: As origens de nosso mal-estar”
No dia do meu aniversário de 40 anos, em meio à festa, meu psiquiatra me indicou esse livro. Meses depois comecei a ler e, apesar de já ter lido muito sobre racismo, jamais havia compreendido quão enraizado e complexo é o conceito de "casta".
A jornalista estadunidense Isabel Wilkerson narra eventos históricos que permitiram que essa estrutura que legitima o racismo se solidificasse além dos anos. Não é um livro apenas sobre os Estados Unidos, mas sobre Índia, Alemanha e países latino-americanos que se alimentaram da escravidão e holocausto, disseminando a doença da segregação.
O texto, por si só, é fácil de ler, mas o que ela conta desce amargo. Quantas vezes você deixou de ler algo por acreditar que seria difícil demais? Deixar de ler algo horrível é um privilégio roubado de quem vivenciou o que está escrito. O mínimo que um antirracista pode fazer é conhecer suas histórias pra deixar que elas jamais se repitam.
“Casta e raça não são sinônimos nem mutuamente excludentes. Podem coexistir e de fato coexistem na mesma cultura, e servem para reforçar uma à outra. A raça, nos Estados Unidos, é o agente visível da força invisível da casta. A casta é a ossatura, a raça é a pele. A raça é o que podemos ver, os traços físicos que receberam um significado arbitrário e se tornaram um resumo do que a pessoa é. A casta é a poderosa infraestrutura que mantém cada grupo em seu lugar”.
Tem muitos outros livros que eu indicaria, como o “Depois do fim: Conversas Sobre Literatura e Antropoceno", organizado por Fabiane Secches (que entrevistei aqui) e “Racismo algorítmico: inteligência artificial e discriminação nas redes digitais", do pesquisador e mestre em Comunicação Tarcízio Silva. Mas fica pra outro dia.
Você lê livros de não-ficção? Poste uma indicação nos comentários”
Ah antes que você se vá, ouça o episódio que gravamos com. Mário Magalhães sobre biografias e a escrita de não-ficção:
E outro com o professor e pesquisador do Departamento de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Rogério Christofoletti, sobre ética, literatura e jornalismo:
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Beijos, Carol
Que indicações incríveis!
Eu gostaria de enviar o meu livro de presente para vocês. Me sinalizem se houver interesse, tá bem? Um beijo!