"Gaibéus", de Alves Redol, e a desumanização de trabalhadores e trabalhadoras rurais
Nesta resenha do romance português publicado em 1939, falamos dos recursos utilizados pelo autor paara demonstrar a opressão, especialmente das mulheres do campo
Publicado em 1939, o romance “Gaibéus”, de Alves Redol, é considerado a primeira obra do neorrealismo português. Nele estão presentes a resistência ao fascismo, representado em Portugal pelo salazarismo naquela época, e a literatura engajada que marca essa escola literária. O romance denuncia a situação sub-humana de quem percorre as margens do Tejo para trabalhar em plantações durante o verão, e depois poder voltar, com algum recurso financeiro, às suas vilas. Estes são os gaibéus.
Obra de denúncia e crítica social, o livro não tem um protagonista: toda uma classe é ali representada. No prefácio, o autor escreve sobre essa escolha: "Propus-me com ‘Gaibéus’ criar um romance antiassunto, ou melhor, anti-história, sem personagens principais que só pedissem comparsaria às outras. O tema nasce no coletivo”. Para Altamir Botoso, em “A luta entre vítimas e algozes: uma leitura do romance Gaibéus, de Alves Redol”, essa decisão faz com que Redol crie, na obra, um herói coletivo:
“No romance ‘Gaibéus’, as personagens não são individualizadas, não existem personagens protagonistas. Elas são tratadas como elementos homogêneos e equivalentes, ocorrendo a inexistência do herói protagonista, não existe evolução das personagens na obra, pois o individual desaparece no aglomerado populacional. O herói do romance ‘Gaibéus’ é um herói coletivo, formado por uma classe social desfavorecida”.
Não que não existam personagens: alguns são citados para que possamos, de alguma maneira, humanizar estes trabalhadores e vermos que há diferenças entre eles, como o ceifeiro rebelde, que demonstra consciência social; Maria Rosa, que representa a exploração ainda mais aprofundada da mulher; e os jovens gaibéus, que sonham com um futuro diferente.
Como explica Juarez Donizete Ambires em “O neorrealismo em Portugal: escritores, história e estética”, “ao longo da trajetória, para o entretimento, histórias são contadas. Em verdade, uma se emenda à outra e, narrando, os camponeses se narram. Em cena, destacam-se a sua vivacidade e a sua resistência às intempéries de toda a sorte. Em sintonia com Euclides da Cunha, no romance se pode dizer que o camponês é um forte”.
Para transmitir a essência da condição sub-humana de trabalho enfrentada pelos gaibéus, considerados menores até mesmo entre outros agrupamentos de trabalhadores rurais, este protagonista coletivo é descrito como alguém “coisificado” pelas relações de trabalho. Tanto no enredo como no estilo, o autor usa recursos que dão ao leitor a sensação de estar lendo sobre máquinas ou animais, e não sobre pessoas. Essa é a condição imposta pela relação entre patrão e trabalhador aos gaibéus.
Segundo Botoso, isso é uma característica do romance neorrealista português: “As personagens das obras dos referidos autores ressaltam que ‘o ser humano é visto como uma máquina, que não pode estragar, porque representa um capital investido pelo patrão, que obrigatoriamente quer o retorno’, instaurando na diegese uma luta constante entre vítimas e algozes, que funciona como uma denúncia do período no qual vigorou a ditadura em Portugal e passa-se do individual, uma das marcas mais acentuadas da literatura presencista, ao coletivo, o traço que mais se evidencia nas ficções neorrealistas”.
Na obra inaugural do neorrealismo, os gaibéus “passam por um processo de desumanização e são equiparados a animais e máquinas”, deixa ainda mais claro Botoso. O livro de Redol mostra que os próprios personagens se reconhecem dessa forma: “Há um homem que repara na tortura das éguas peadas. Aquelas tão com’a gente”. Mais adiante, outro trabalhador reflete: “Os gados e os ceifeiros - tudo gado”.
No capítulo “Malária”, a comparação dos trabalhadores às máquinas é frequente, como forma de mostrar que, mesmo quando padecem da doença, os gaibéus precisam continuar a trabalhar: “Os homens tornam-se máquinas também; não raciocinam nem têm querer”.
Até mesmo os momentos de descanso mantêm o trabalhador nesta condição: “Cada homem na eira não passa de um volante, uma correia ou um braço da ciranda. Quando o apito soar, o volante achará os raios, a correia e o braço da ciranda adormecerão. Os homens irão ajudar à carga e pensar na vida. Nos corpos de alguns correrá o frio das sezões; e os cérebros, libertos da vertigem comunicativa das máquinas, encontrarão pensamentos. Mas os seus pensamentos não sabem ainda acalentar fadigas. Nas poisadas, a vida torna-se mais negra. De novo se acham homens, e gostariam de ficar máquinas para sempre - as máquinas não pensam”.
O trabalho de sol a sol, a chuva como empecilho, já que impede a ceifa, o local insalubre onde dormem, a sede, a fome, a doença recorrente: tudo isso faz parte do cotidiano melancólico dos vencidos gaibéus. “A malta trabalha em silêncio e só as foices e as espigas falam. As tosses, de quando em quando, dizem que ali vai gente - isso a distingue das máquinas, que não têm pulmões”.
Repetições de frases e trechos inteiros em capítulos como “Arroz à foice” dão, também no estilo literário, a percepção da rapidez das máquinas. O parágrafo “Não pode parar, porque lá embaixo, no aposento, o patrão está a fazer contas à colheita, que correu em boa maré”, aparece mais de uma vez. Essa repetição dá ao leitor a sensação do trabalho repetitivo na lavoura e no ensacamento do arroz, feito pelos gaibéus, que resulta no lucro do patrão.
Para as mulheres, a condição é ainda mais degradante, pois além de expostas às mesmas situações sub-humanas de trabalho, ainda são objetificadas pelos homens e exploradas sexualmente pelo patrão.
Em um trecho do livro, o dono das terras chega ao local em que os gaibéus trabalham para escolher a mulher que mais o agradasse e levar para sua casa: “Os olhos vagueavam pelo rancho, saltitando de mulher para mulher. Chegara à feira, podia escolher”.
Além disso, a subalternidade das trabalhadoras é descrita como um elemento que agrada ao patrão: “O Agostinho Serra viu-as passar de faces vermelhas e olhos no chão. Como ele gostava de mulheres com aquele jeito…”. A escolhida é Maria Rosa. Para Botoso, essa personagem “exemplifica a realidade social das mulheres no sistema capitalista. Ela é tida como um ser inferior e, por isso, é explorada tanto no trabalho quanto sexualmente e liga-se à ideia de posse.
Como explica Angela Davis em “Mulheres, raça e classe”, “uma consequência ideológica do capitalismo foi o desenvolvimento da ideia mais rigorosa da inferioridade feminina”. Ela aponta que, desde a escravidão, os homens brancos em posições superiores tinham acesso irrestrito ao corpo das mulheres, e reforça que, no capitalismo, a dupla opressão se fortaleceu: como mulheres e como trabalhadoras.
Para ouvir
Nesse episódio do Posfácio, falamos de Angela Davis:
E nesse, sobra trabalhadoras e trabalhadores rurais:
Acompanhe as novidades do Posfácio!
Nos próximos dias, anunciaremos novidades nas redes sociais do Posfácio Podcast. Tem muita coisa nova boa vindo por aí, e não só no campo da literatura! Acompanhe nossos perfis nas redes sociais (@posfaciopodcast).
Você conhece nossa campanha de financiamento coletivo?
Corre lá no apoia.se/posfaciopodcast. A partir de R$ 10 por mês, você concorre mensalmente a livros maravilhosos!
E você também pode apoiar o Posfácio de outras formas: curta nossos perfis nas redes sociais, faça uma boa avaliação nos tocadores, e compartilhe o podcast. Assim você incentiva a cultura, a literatura, a educação e o jornalismo cultural.
Participe de nossa pesquisa!
Estamos buscando sempre melhorar, por isso, pedimos a sua ajuda para responder uma pesquisa rápida. Uma das maneiras de contribuir para o desenvolvimento de produtos jornalísticos melhores é a opinião do público — ou seja, é super importante pra gente saber o que você pensa. Todas as respostas são anônimas, portanto, pode responder sem medo de identificação.
Caso tenha chegado aqui por algum compartilhamento, visite Posfácio News aqui.
Um beijo!
Stefani
Esse texto está muito bom e deu vontade de ler o livro!