Diário de leitura de "Úrsula", de Maria Firmina dos Reis
Stefani Ceolla relata nesse texto como foi seu primeiro contato com a obra
Escrevi este texto em formato de diário para registrar minhas sensações conforme o transcorrer da leitura de Úrsula, de Maria Firmina dos Reis. Essa atividade foi proposta pela professora Telma Scherer, do curso de Letras - Língua Portuguesa e Literaturas da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e realizada em 2020.
As primeiras reflexões foram: Há uma pressa de chegar ao final. Há também a esperança de encontrar um final feliz, mesmo que toda a história indique que isso é impossível. É fácil a leitura de Úrsula, tanto pelo texto quanto pela construção da narrativa. Difícil é aceitar a atualidade da obra, publicada em 1859 por Maria Firmina dos Reis. Tenho mais perguntas do que respostas.
18/9/2020
Escrevo à minha mãe: “Você já tinha ouvido falar em Maria Firmina dos Reis? Quando estudou ou deu aula, sabia sobre ela?”
Minha mãe foi professora de português. Eu aprendi o gosto pela leitura e pela escrita com ela. Mas cresci lendo só o pouco que chegava à minha cidade ou estava disponível na biblioteca da escola. Cresci lendo só homens brancos.
Eu tenho 33 anos [em 2020] e nunca tinha ouvido falar de Maria Firmina dos Reis. Sou mulher, feminista, filha de professora de português, estou na segunda graduação. Nunca tinha ouvido o nome da primeira mulher a publicar um romance no Brasil. Por que?
Tenho dedicado tempo a ler sobre o por quê. Essa disciplina me ensina sobre os vários por quês. Mas continuo a me questionar sobre o motivo de Úrsula não ter chegado antes a mim. Quais são meus círculos? Quais são meus interesses? Por que minha formação literária não a tinha incluído até agora?
Em 1859, Maria Firmina pediu licença pra que Úrsula pudesse passar. Por que ela demorou tanto tempo para chegar até mim?
20/9/2020
Qual teria sido o impacto se eu tivesse aprendido na escola que os negros africanos foram SEQUESTRADOS de suas terras para serem escravizados nas Américas? Se em vez de TRÁFICO eu tivesse aprendido a palavra SEQUESTRO? Se eu tivesse lido Úrsula e conhecido, ainda que brevemente, sobre como eram as vidas dessas mulheres e homens enquanto sujeitos livres, na terra em que nasceram e cresceram, até serem sequestrados e trazidos para cá? Será que o racismo estrutural seria tão forte e presente ainda hoje se fôssemos todos lembrados, desde sempre, que estas pessoas foram obrigadas a deixar uma vida livre pra trás pra serem escravizadas aqui?
Eu nunca li sobre a vida que os negros africanos deixaram lá ao serem sequestrados e trazidos para cá até conhecer a Susana, que perdeu marido, filha e liberdade. Que lembra do mar e das plantações em suas terras. Que era sujeito e ao chegar ao Brasil passou a ser tratada como objeto. Por isso usam tráfico, em vez de sequestro. É reflexo do racismo, que não vê humanidade no outro. Mas se soubéssemos da vida de Susana antes da escravidão, será que essa desumanização prevaleceria?
A única referência à palavra sequestro relacionada ao que aconteceu com os africanos escravizados me chegou pouco antes desta leitura, por meio da música. Em Ismália - uma canção que carrega muito de literatura - Emicida rima: “Primeiro sequestra eles, rouba eles, mente sobre eles. Nega o deus deles, ofende, separa eles”. Eles são Túlio, Susana e tantos outros. Aquele racismo presente em Úrsula marcado pela escravidão é o mesmo que resistiu até hoje e é tragicamente cantado em Ismália. Se lá eram os açoites do cativeiro, aqui “80 tiros te lembram que existe pele alva e pele alvo”, canta Emicida.
A narradora de Úrsula reflete: “Senhor Deus! Quando calará no peito do homem a tua sublime máxima - ama a teu próprio como a ti mesmo - e deixará de oprimir com tão repreensível injustiça ao seu semelhante! Àquele que também era livre no seu país. Àquele que é seu irmão?”.
Em 2020, o mesmo questionamento feito por ela 1859 continua sem resposta.
21/9/2020
Se o racismo não fosse tão presente no cânone literário, eu teria lido Maria Firmina em vez de qualquer autor branco que simboliza o romantismo. Porque a qualidade literária de Úrsula é potente. Porque tanto como romance quanto como narrativa histórica, esta obra me atrai muito mais do que qualquer outro expoente do romantismo que chegou até mim.
Por que li Senhora mais de uma vez, na adolescência na escola, na vida adulta na universidade, mas Úrsula só me chega agora?
Encontrei amparo e voz à minha revolta no cordel de Jarid Arraes sobre Maria Firmina:
“No entanto, me revolta
O nojento esquecimento
Pois nem mesmo na escola
Nem se quer por um momento
Eu ouvi falar seu nome
Para o reconhecimento.
Como pode algo assim?
Se a história ela marcou
Por que não falamos dela
Nem do que ela conquistou?
É terrível a injustiça
Que a escola maculou”.
22/9/2020
Úrsula abalou meu sono. O drama da protagonista e dos escravizados me acompanharam pela noite após a leitura que faço antes de dormir. Nos meus sonhos, a tragédia de Úrsula me preocupava enquanto eu tinha a missão de revisar romances clássicos em busca de encontrar e reescrever trechos de cunho racista. Era um trabalho sem fim com o qual eu não concordava. Não tem como apagar o racismo da nossa história nem da nossa literatura, eu insistia, em vão. E a cada novo romance aberto eu descobria que todos os “grandes escritores” eram racistas. Não foi uma noite de sono tranquilo. Talvez precise escolher horários alternativos para ler.
23/9/2020
Todo o drama envolvendo não só Úrsula, mas todas as personagens femininas, está envolto de uma forte crítica ao patriarcado. Fernando P., o vilão, é o típico patriarca da família burguesa do século 19 - e que infelizmente se perpetua até hoje. O homem branco e poderoso que não suporta ser contrariado. E que acredita, mais do que tudo, que mulheres não são sujeitos. Mulheres não podem ter vontade. Mulheres não escolhem. Só obedecem. Úrsula e a mãe ousaram contrariá-lo e tiveram a vida destruída por um homem que se julga dono de negros escravizados e dono de mulheres.
Seria terrível por si só ler este aspecto do romance como algo que ficou no passado. Mas hoje, no jornal, li a notícia de uma mulher que foi morta, envenenada, junto com o filho, um bebê de colo. O autor confesso do crime era o marido dela. O motivo: ela queria se separar. Mulher não pode ter vontade própria, não pode escolher. Fernando P. curtiria isso.
Seria a loucura uma redenção? Penso em Úrsula. Talvez se chegue a um ponto em que lidar com a realidade é impossível e só reste a insanidade para aliviar o sofrimento, até a morte. Perder a consciência sobre a própria desgraça é, ali, o final mais feliz possível.
CONTEÚDO EXTRA
Leia “Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis, de graça
Escute o episódio do Posfácio Podcast sobre mulheres negras na literatura:
Beijos e até a próxima!
Questionamentos muito pertinentes. Também só fui conhecer Maria Firmina dos Reis depois dos 30. E adoro a Telma!