Crônica sobre o dia em que sentei num café e conversei com Cruz e Sousa
Na semana da Consciência Negra, o maior poeta simbolista desse país faz aniversário. E ele se tornou meu amigo, eu juro
Me senti estranhamente próxima do grande poeta Cruz e Sousa quando estávamos produzindo a série do Posfácio Pocast sobre literatura catarinense, e vou contar pra vocês o motivo disso. Na real, essa aproximação tinha começado um pouco antes, anos atrás, quando li o livro “Negro”, organizado pela professora Zilma Gesser Nunes, que reúne não só a celebrada poesia, mas também prosa e cartas deste catarinense. Ali foi possível descobrir um outro Cruz e Sousa, um homem muito mais preocupado com o sarcasmo que com a forma, com a diversão da escrita e não com seus símbolos.
Depois disso, no curso de Letras, que frequento na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), decidi me matricular na disciplina optativa chamada Noções de Versificação. Logo eu, que nunca escrevi um versinho que prestasse na vida.
Na real, foi esse o motivo da minha matrícula: eu não sei ler poesia. Ou, pelo menos, não sabia. E o professor Alckmar dos Santos não apenas sabe ler como sabe ensinar a ler, e eu aprendi um pouco. Ainda não muito, mas não por falha do professor: o problema é que eu não oriento meu cérebro. Eu esqueço que poesia não é prosa e exige outro tipo de esforço. Daí, quando eu lembro, as vezes já perdi o timing, já não entendi o texto, já me apeguei a uma frase boa, fiz uma foto de um trecho, postei no Instagram e fim. Spoiler: não é assim que se lê poesia. Mas sigo tentando.
Entre os vários exemplos de excelentes poetas dados nessa disciplina, estava Cruz e Sousa. E com o homem, eu me puxo pra ler direitinho. Eu tento respeitar as pausas, as sílabas, a pontuação ou não. Eu até conto as sílabas do jeito que o professor ensinou, eu juro! E foi assim que consegui passar na disciplina, graças a Cruz e Sousa.
Pois bem, além da escrita, tem outra coisa que facilita a aproximação com ele pra quem mora em Floripa, como eu. Tem o palácio, no centro da cidade, que leva o nome dele, e carrega muito da história do maior simbolista brasileiro, um dos maiores do mundo, que nasceu aqui, nessa Desterro de onde escrevo.
Quando eu paro pra pensar, eu acho meio inacreditável. E quando ando pelas ruas estreitas do centro, com seu paralelepípedo histórico que incomoda tanta gente que prefere mesmo um cimento lisinho, eu fico pensando que ele já andou por ali, assim como Antonieta de Barros, nossa grande deputada e professora, assim como o abolicionista Artista Bittencourt (que em “Um largo, sete memórias” descobri que é bem mais que um nome de rua). Enfim, entre ruas, museus e palavras, fui me achando muito próxima do poeta, quase uma conhecida, quase alguém que eu poderia chamar pelo primeiro nome - “João, chega aí” - e não pelo célebre sobrenome que merecia ser bem mais célebre ainda.
Aí, finalmente, chegamos à série sobre literatura catarinense e sobre três ou quatro pessoas que me aproximaram ainda mais do cara. A primeira foi outro grande escritor que se tornou meu amigo do peito enquanto trabalhava nesses materiais e o lia até cansar, o querido Salim Miguel. Em um dos livros dele, chamado “Aproximações”, encontrei vários textos em que ele escreve sobre Cruz e Sousa. Ele conta, por exemplo, sobre o quanto o poeta o acompanha há tanto tempo - também ele super próximo do João, bem mais do que eu, certamente. Eu amei ler aquilo porque apesar de todo o cuidado e zelo de Salim com sua crítica literária, quando escrevia sobre Cruz e Sousa eram textos apaixonados, curiosos, eram outra coisa.
Daí a gente pediu pro jornalista Dorva Rezende, entrevistado nessa série, dar voz ao Salim falando sobre Cruz e Sousa. E foi tão bonito, tão real, que eu quase posso imaginar o Salim sentado num café me falando sobre o João, a excelente poesia do João, a triste vida do João, a superação do João, se perguntando “será que por um acaso o João encontrou o Joaquim Maria pelas ruas do Rio de Janeiro quando viveu lá?” - Joaquim Maria pra nós, que somos íntimos, pros outros é só Machado de Assis.
Eu já estava assim, ouvindo o Salim me falar do João, mas faltava ouvir o João. As palavras dele já estava ali na minha cabeça, selecionadas pro roteiro dos episódios, eu já conhecia o cara, mas ainda parecia aquele amigo que escreve muito pelo WhatsApp mas não manda áudio nunca. E daí eu mandei o áudio, pra outro amigo - esse, íntimo de verdade, eu chamo só de Ed, mas se você mora em Santa Catarina, conhece por Edsoul. Edsoul Amaral.
Eu tive a audácia de pedir um favor pro cara numa semana em que SC enfrentava mais um desastre natural. E o Ed é jornalista, de TV, ele tava ali na rua cobrindo aquele caos enquanto me respondia que podia ser, sim, a voz do Cruz e Sousa, e até escolheu o poema que queria recitar sem que eu pedisse, até porque ele sabe que eu perguntaria “qual você mais gosta?”, e ele diria “Acrobata da dor”.
Num sábado ao meio-dia o Edsoul foi o primeiro jornalista negro a apresentar sozinho o Jornal do Almoço, da NSC TV - talvez o principal telejornal de Santa Catarina. É tão grande, tão merecido, tão incrível o feito do Ed, não só por ele, mas porque ele é um cara que leva muita gente junto, que se recursa a subir sozinho. E foi bem naquele sábado, em que ele tava ali, brilhando como nunca, que ainda teve a generosidade de entrar num estúdio e me gravar dois áudios lendo poemas do Cruz e Sousa numa qualidade impecável. Naquele dia, eu descobri a voz do João. Ele fala assim:
Eu escrevo esse texto, essa newsletter, que meio que virou uma crônica (eu não sei fazer crônica, socorro!) em 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, direto da Desterro de Cruz e Sousa, Antonieta de Barros, Edsoul, Chaiane Guterres. Da poesia simbolista e do slam. Na sexta-feira, dia 24, é aniversário do meu amigo João, sagitariano pessimista e sarcárstico como eu, mas com uma dose inigualável de talento. E meu pedido nesse dia é: leiam Cruz e Sousa. Ouçam, conversem com ele. Contem as sílabas ou não, mas leiam o homem. Não vão se arrepender.
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Stefani