No ano passado eu li o romance “A Corneta”, de Leonora Carrington, e fiquei feliz demais. Lembro de pensar que fazia muito tempo que eu não lia algo que me divertia tanto. Eu gosto de histórias tristes. Luto, trauma, amores contrariados (não necessariamente nessa ordem). E de repente um livro que chegou do nada na minha casa me capturou de um jeito que eu não queria parar de ler. E eu ria lendo, era uma maravilha. Eu falei sobre ele num Diário de Leitura do Posfácio Podcast:
Acho que o que mais me fazia feliz era a acompanhar a relação da protagonista, Marian, e a melhor amiga dela, Carmella. É a Carmella que dá a corneta auditiva que dá nome ao livro. Que mulher, com seus cabelos ruivos e seu senso de humor magnífico. Logo no começo da história, ela diz:
“As pessoas acima dos 7 e abaixo dos 70 não são nada confiáveis, a menos que sejam gatos”.
Levei pra vida.
Essas colocações sobre a idade estão em todo o livro. A Marian, por exemplo, descobre que a família quer colocar ela num asilo, e questiona a amiga: “O que devo fazer? Acho uma pena cometer suicídio depois de viver 92 anos e não ter entendido nada”.
A única preocupação é que, estando num lugar assim, ela seria obrigada a socializar, e ficaria mais difícil realizar seu sonho de conhecer a Lapônia.
Felizmente, num lugar que faz a palavra surrealismo ter todo sentido, ela encontra outras mulheres e forma uma grande irmandade, que vira uma revolução, que as torna sobreviventes de uma nova Era do Gelo (sim, é isso mesmo).
O romance acaba e vem um posfácio, assinado pela Nobel de Literatura Olga Tokarczuk. Eu nunca tinha lido ela antes, apesar de “Sobre os ossos dos mortos” estar há um bom tempo na fila de espera.
Nesse posfácio maravilhoso, ela trata muito de literatura, mas também aborda a questão da mulher idosa. Sobre a Marian, por exemplo, ela escreve: “A excentricidade é um dos modos permitidos a uma mulher idosa quando ela não está desempenhando o papel de avó bondosa”.
E ainda resume a “A Corneta” dessa forma:
“De fato, colocar uma velha surda no papel de narradora, de heroína e de espírito reinante, e preencher o livro com um grupo de senhoras estranhas, indica desde o início que esta história será um caso de excentricidade radical”.
Depois de ler isso, eu decidi que era hora de encarar a Olga. E assim como em “A Corneta”, me diverti muito com a senhora Dusheiko de “Sobre os ossos dos mortos”. Não menos excêntrica que Marian e Carmella, essa uma mulher idosa vive em um vilarejo isolado na fronteira entre a Polônia e a República Checa. No inverno, cuida das casas dos vizinhos. No verão, compartilha o ambiente com eles. Se relaciona com poucas pessoas, às quais se refere por ótimos apelidos, e compra grandes brigas com caçadores. Ela é da causa animal, vamos resumir assim.
Entre investigações e astrologia, a senhora Dusheiko também reflete sobre a idade. Principalmente sobre como uma mulher na idade dela é tratada. Algumas pessoas zombam, diminuem, não a levam a sério. Ela, porém, raramente responde. Pois que pensem o que quiserem.
Assim como Carmella e Marian, por mais “peculiares” que sejam entendidas, elas querem pouco do mundo: apenas a garantia de que poderão viver, envelhecer e morrer do modo como desejam.
Mais sobre a velhice
Tenho encontrado, mesmo sem procurar por isso especificamente, maravilhosos livros que têm a velhice como tema. “Mariconas”, da Euler Lopes, é um deles (vem aí na próxima temporada do Posfácio, em junho. Informei!). De certa forma, isso também aparece em “A ridícula ideia de nunca mais te ver”, da Rosa Montero, sobre o qual falei aqui:
Recentemente, li o texto “Helô: o almoço é uma linguagem - Algumas notas sobre os quatorze anos de trabalho com Heloisa Teixeira”, assinado pela Maria Bogado para a revista Piauí. E separei um trecho sobre a velhice que achei particularmente tocante, e me remeteu muito aos livros “Sobre os ossos dos mortos” e “A Corneta”:
“Guardo muitas recordações dos anos que trabalhamos juntas. Certa vez, cheguei em sua casa num sábado e a encontrei sozinha deitada no sofá fazendo nebulização. Quando ela retirou a máscara, lá estava o contorno impecável do batom vinho meio arroxeado – ela nunca abriu mão do batom, em qualquer situação. Assim como eu, ela era alérgica a pó, de modo que começou a se desfazer dos seus livros no final da vida. Gostava de praticar o desapego, mas tinha resistência em doar as obras de poesia e os títulos de culinária – eu já disse que a mesa e os almoços eram especiais para ela. Também nunca aceitou plenamente as recomendações de sua médica, Margareth Dalcolmo, para que evitasse a presença dos três cachorros (Bob, Joana e Manoela) em seu quarto. Conheço bem essa história porque minha avó (verdadeira, a Mareda) mantém – assim como Helô mantinha – um amor radical pelos animais. Mas há diferenças. Minha avó brinca que, um dia, vai “morrer de cachorro”, porque eles vão pular e ela vai cair, ou sei lá o quê, ciente da fragilidade do seu corpo de noventa e poucos anos. Já Helô nunca considerou seus bichinhos uma ameaça – chamava-as de “minhas meninas”. De todo modo, prefiro pensar que, diante das outras doenças que a acometeram nos últimos anos, “morrer de cachorro” não seria exatamente um problema. No seu gosto cafajeste – que sonhava em ser “cachorra” e, de preferência, “vira-lata” – acho que ia gostar dessa definição. É um jeito de morrer de amar demais, morrer porque não sabia bem como fechar as portas”.
Heloísa Teixeira, que morreu no último dia 28 de março, se referia às suas cachorras como “minhas meninas”. A senhora Dusheiko também. Eu posso apostar que elas, Marian e Carmella se dariam muito bem.
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Stefani