A nóia de quem não confia no narrador
Quem narra "Dias de se fazer silêncio", da Camila Maccari?
Todos nós, leitores brasileiros, fomos vacinados por Machado de Assis: desde “Dom Casmurro”, tá proibido confiar no narrador. O problema disso é que me tornei obcecada por essa dúvida. Tem uns narradores que quase me enganam. Uns que me fazem chegar no final do livro e pensar: ok, acho que não tinha nenhuma pegadinha aqui. E alguns que me levam desconfiada até a última página pra eu fechar o livro e dizer: RÁ, EU SABIA!
Foi assim que eu me senti lendo “Dias de se fazer silêncio”, da Camila Maccari, livro que recebeu o Prêmio Açorianos de Literatura na categoria Narrativa Longa. Na verdade, eu senti muitas coisas lendo esse livro: tristeza, solidão, raiva, empatia, compreensão, mas também desconfiança sobre quem narra.
O livro tem como protagonista Maria, uma criança que precisa lidar com a doença do irmão, a ausência dos pais, o silêncio dentro de casa, as culpas e desejos que carrega. É, essencialmente, um livro sobre luto. É triste, mas com isso eu consegui lidar (chorando muito).
O que me desestabilizou foi o narrador: perto demais da Maria, com uma voz muito parecida com a da Maria, totalmente focado na Maria, mas em terceira pessoa. Não era a Maria contando a história. Ou era? Brisei legal.
Essa pira toda tá no episódio do Diário de Leitura, do Posfácio Podcast, que foi ao ar na última sexta-feira:
Atenção: nenhum ato falho que eu cometo neste episódio é um ato falho!
Encontrei uma entrevista da Camila pro Matinal Jornalismo (amo) de 2022 em que ela fala um pouco sobre isso:
Foi meio que uma brincadeira, sabe? Dar uma esticadinha na corda com a possibilidade de texto mesmo. O narrador em terceira pessoa é tão grudado em Maria que às vezes, dependendo do fluxo, você pode dispersar e perder a linha de será que é primeira ou terceira pessoa que está falando ali.
Eu perdi a linha total.
Superada a noia sobre quem narra (ou não), esse livro me pega também em outro aspecto. Desde o ano passado tenho estudado a escrita do trauma com a Jarid Arraes (ela também já passou pelo Posfácio. Você pode ouvir aqui). E entre as discussões nas oficinas, está a representação do trauma na literatura. Ele pode ter diferentes origens: a negligência, o abandono, o abuso, o luto. E se manifesta de maneiras diferentes, em pessoas diferentes.
Tentei olhar pra Maria também dessa forma: como uma criança que enfrenta um trauma e como ela mesma reflete sobre isso, de maneira lindamente crua e autoconsciente.
Falando nisso, as inscrições estão abertas pra próxima oficina de escrita do trauma da Jarid. Tem todas as informações no Instagram dela:
Só assunto leve!
Apoie o Posfácio!
Se você gostar desse conteúdo e quiser conhecer mais nosso trabalho, ouça os episódios anteriores do Posfácio! Tem muito bate-papo entre amigas sobre livros, tem entrevistas com autoras e autores, tem uma série especial narrativa sobre literatura catarinense, e o premiado episódio especial "Literatura Submersa":
Considere ainda apoiar nosso trabalho! Acesse apoia.se/posfaciopodcast. Doando a partir de R$ 10 por mês, você apoia o jornalismo cultural, independente e feito por mulheres, e ainda concorre a combos de livros todos os meses.
Se não puder ajudar financeiramente, lembre que custa zero reais curtir e compartilhar nosso conteúdo! Pra nos conhecer ainda mais, acesse nossas redes sociais, @posfaciopodcast.
Extras
Entrevista da Chimamanda Ngozi Adichie para O Globo sobre seu novo livro, em que afirma: “Independente da sua opinião sobre o que uma mulher disse ou fez, escute a versão dela”.
Reportagem do Nonada (também amo) sobre pesquisa da Periferia Brasileira de Letras que mostra que 64% dos coletivos de incentivo à leitura no Brasil não são formalizados.
Entrevista da deusa Heloísa Teixeira para Neca Setubal e Sueli Carneiro no podcast “Escute as mais velhas”. A conversa foi gravada em junho de 2024. Heloísa, escritora, crítica literária e feminista, morreu no último dia 28 de março.
Obrigada por acompanhar nosso trabalho!
Beijos, Stefani
Tive a honra de fazer pós-graduação com ela, em escrita criativa, na Pucrs; baita artista!