A memória da ditadura militar na literatura de não-ficção
Livro “Arquivos de prisão: Eglê Malheiros e Salim Miguel”, organizado por Ricardo Machado, vai da memória individual à coletiva
Neste mês de abril, quando se completaram 61 anos do golpe militar, uma obra importantíssima foi lançada em Santa Catarina: “Arquivos de prisão: Eglê Malheiros e Salim Miguel”, organizada pelo Ricardo Machado e publicada pela Editora Humana.
Estive no lançamento, que rolou no dia 4, na Universidade do Estado de SC (Udesc), pra ouvir o Ricardo contar sobre esse trabalho que, além de tudo, está belíssimo (como todos os livros da Humana, por sinal): o livro tem projeto gráfico da Tina Merz e um mapa ilustrativo de Florianópolis feito pelo Ivan Jerônimo.
Antes de tudo, recomendo que ouçam este episódio do Posfácio Podcast sobre Eglê e Salim, que fez parte da série especial narrativa sobre Literatura Catarinense:
O casal teve uma atuação importantíssima no meio cultural e político em Santa Catarina e é, sem dúvida, símbolo de resistência. As histórias de ambos me fascinam: Eglê se envolveu com a política muito cedo; o pai dela foi assassinado em Lages, ela saiu de lá, estudou, foi a primeira mulher a se formar em Direito em SC, se tornou professora e era uma intelectual respeitadíssima, que faleceu recentemente. Salim nasceu no Líbano, veio com a família para o Brasil ainda bem pequeno, se instalou na Grande Floripa, foi autor de mais de 30 livros (que serão todos relançados pela EdUFSC, aliás), dono de livraria (incendiada na ditadura), diretor de editora e jornalista.
No ano passado, quando foi celebrado o centenário de Salim Miguel, fizemos esse episódio sobre sua atuação no jornalismo:
Toda essa volta pra chegar ao que o Ricardo falou sobre eles e sobre o trabalho para organizar esse livro na palestra que proferiu na Udesc. Ele contou que foram cinco anos de trabalho, e boa parte da pesquisa foi realizada no Instituto de Documentação e Investigação em Ciências Humanas (IDCH) da universidade, pra onde Salim e Eglê doaram seus arquivos. Esse foi um ponto muito relevante destacado por Ricardo:
Presos na ditadura, eles sabiam que todos os registros sobre aquele momento seria parte de uma memória coletiva. Por isso, tiveram o cuidado de guardar tudo e, depois, entregar para um acervo, o que possibilitou essa e tantas outras pesquisas sobre a ditadura militar em Santa Catarina.
São estes documentos, como o processo-crime contra o casal, que estão publicados na íntegra no livro lançado pela Humana. “Me interessa que os leitores tenham a mesma curiosidade que eu tive em ler os próprios documentos”, disse Ricardo.
O professor, historiador e escritor também relaciona a importância da obra com o momento presente:
O estado de Santa Catarina vem sendo simplificado neste aspecto de extrema-direta, e talvez seja tarefa nossa, de historiadores, contar outras histórias que compõem essa região, como é a história do Salim e da Eglê.
(Eu me emocionei quando o Ricardo disse isso)
O livro começa com uma apresentação, seguida do mapa ilustrado que sinaliza pontos importantes desta história em Florianópolis e segue com os documentos relacionados às prisões. Por fim, há um perfil de Eglê e um de Salim escritos pelo Ricardo. Achei interessante a distribuição porque primeiro temos acesso aos fatos, e depois a quem eram as pessoas envolvidas de forma mais aprofundada.
“Da minha parte é um gesto de desarquivar, levar ao público e permitir novas interpretações. Do ponto de vista político, pra mim é uma forma de agir no mundo. Me pareceu um gesto político necessário”, completou o organizador, desejando que novas pesquisas surjam, “especialmente sobre a Eglê”. De fato, trata-se de uma mulher incrível: aos 20 anos, por exemplo, era dirigente do Partido Comunista em Santa Catarina.
Importante dizer que haverá muitas outras oportunidades próximas de dialogar sobre essas duas pessoas tão importantes para a cultura, política e democracia.
No dia 24 de abril, às 18h, haverá lançamento do livro e debate na Câmara Municipal de Florianópolis. E no dia 26 de abril tem uma homenagem a Eglê no Teatro e Igrejinha da UFSC. No evento, será exibido o documentário “Eglê”, da Adriane Canan.
Inquérito Paulo Freire
Os “Arquivos de Prisão” de Salim e Eglê me fizeram lembrar de outro livro que li recentemente: “Inquérito Paulo Freire: a ditadura interroga o educador”, organizado por Joana Salém Vasconcelos e publicado pela Editora Elefante. A obra apresenta na íntegra os depoimentos que o educador prestou durante duas prisões que sofreu em 1964. Neles, teve que explicar seu método de alfabetização, “altamente subversivo”, e seu posicionamento político.
“É uma fonte histórica que pode mobilizar uma interessante variedade de debates formativos que tratem, por exemplo, das formas da repressão na ditadura brasileira, do significado documental de um IPM, da situação de Pernambuco em 1964, das modalidades das acusações, do esquema mental dos opressores, da paranoia anticomunista dos golpistas e da natureza do medo do opressor frente à pedagogia freiriana — enfim, do tenso encontro, dentro de uma sala, entre dois projetos antagônicos de Brasil”, escreve a organizadora na apresentação do livro, que também recomendo demais!
Para que nunca se esqueça!
Mudanças no Posfácio
Aproveito essa newsletter para contar das mudanças pelas quais o Posfácio Podcast está passando: a Carol Passos, que faz o podcast comigo, está saindo. Ela publicou um texto lindo nas redes sociais explicando essa mudança e contando que ela de cena, mas o podcast fica.
O Posfácio é um sonho que sonhamos juntas, realizamos coisas incríveis e eu sou muito feliz por isso. Colocamos nele nossa amizade, nosso humor, nosso interesse pelos livros e nosso respeito uma pela outra. É por isso que, por mais desafiador que seja tocar esse projeto sem a Carol, eu não consigo agir de forma diferente.
A programação do podcast para 2025 já começou. Depois de uma série de reprises que demos o nome de Leituras de Verão, em abril e maio você vai encontrar, quinzenalmente, episódios do Diário de Leitura: são conteúdos mais curtos, em que eu falo sobre minha experiência assim que termino de ler um livro. O primeiro episódio inédito do ano já tá no ar, sobre "Dias de se fazer silêncio", da Camila Maccari.
Depois disso, estou prevendo uma série de conversas sobre os livros obrigatórios para o vestibular da UFSC, com a ideia de que seja um conteúdo interessante para vestibulandos e não-vestibulandos que se interessarem pelas obras. É também utilidade pública!
E, no segundo semestre, vou retomar as entrevistas com autoras e autores, sempre com a participação de amigos e amigas que vão me ajudar nessa empreitada daqui pra frente.
O plano é não perder a essência do Posfácio: falar sobre livros com muito bom humor e zero pretensão!
Pra isso, o apoio de ouvintes continua sendo muito necessário. Colaborando com R$ 10 por mês, você apoia o jornalismo cultural e independente e concorre a combos de livros todos os meses. Bora?!
Extras
As dicas de hoje são:
Reportagem “Desenhando Murakami - Quem é a jovem paulistana escolhida para ilustrar todos os clássicos do autor japonês, prestes a serem relançados nos Estados Unidos”, publicada pela Piauí
Muito obrigada por acompanhar o Posfácio!
Beijos e até a próxima,
Stefani