A história da criação da política de ações afirmativas para pessoas trans na UFSC
No segundo episódio de Histórias Plurais, contamos como uma universidade federal de um dos estados mais conservadores do Brasil aprovou a política para pessoas trans mais abrangente do país
No dia 8 de agosto de 2023, eu estava fazendo uma coisa que não é assim muito comum para uma pessoa comum, mas é relativamente normal pra uma jornalista que tem como foco do seu trabalho o que acontece dentro da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC): eu estava assistindo à uma reunião do Conselho Universitário (CUn). Em geral, essas sessões tendem a ser bastante rígidas. Ali, representantes da comunidade acadêmica da UFSC deliberam sobre assuntos que dizem respeito à vida de docentes, técnicos e estudantes, além da Administração Central. As sessões são realizadas uma vez por mês e costumam ser longas. E eu só costumo assistir quando a pauta inclui algum assunto menos burocrático, com maior efeito prático na vida de quem frequenta essa universidade.
Ah, eu frequento a UFSC: além de trabalhar bem pertinho dela e ter como foco do meu trabalho a comunidade docente, eu sou estudante do curso de Letras - Língua Portuguesa e Literaturas. Então, o que rola numa reunião do CUn me interessa duplamente.
Mas naquela tarde de agosto, um dos assuntos da pauta não interessava só pra quem faz parte da comunidade da UFSC. Interessava pra todo o estado de Santa Catarina e pra todo o Brasil. Era tão importante que a pauta foi invertida: previsto para ser o último assunto em discussão, se tornou o primeiro. E começou com a leitura do parecer da relatora.
O assunto era a implementação da política de ações afirmativas para pessoas trans na UFSC. E conquistou minha atenção por uma série de motivos. Primeiro porque quando eu li esse assunto na pauta, eu rapidamente reduzi a política inteira a um termo: cotas. Mas naquela sessão, eu entendi que se tratava de algo muito mais abrangente. Muito mesmo.
Segundo porque, em geral, as reuniões do CUn têm pouca manifestação de pessoas além dos conselheiros. Mas naquela sessão, tinha muita gente. Gente que se manifestou não apenas na plateia, mas teve voz na mesa do CUn, que tem como cadeira central a do reitor. Eu percebi que era algo muito grande. E quis contar essa história.
A coisa que mais me deixa feliz ao fazer podcast é que, diferente do jornalismo impresso, escrito, da onde eu vim, no podcast eu não preciso te contar o que uma pessoa disse. Ela mesma pode dizer. Não sou eu transcrevendo a fala de alguém: é esse alguém falando. E no segundo episódio da nossa nova série de jornalismo em áudio, Histórias Plurais, duas mulheres trans contam sua própria história. Elas explicam como uma universidade federal de um dos estados mais conservadores do Brasil aprovou a política de ações afirmativas para pessoas trans mais abrangente do país.
Eu costumo usar uma frase no Twitter que publico quase que diariamente. Ela diz: “estamos há zero dias sem passar vergonha de ser catarinense. Nosso recorde é zero dias”. Mas em 9 de agosto de 2023, essa estatística muito científica tinha mudado. Eu estava há 1 dia sem sentir vergonha de ser catarinense. E agradeço a Mariana Franco, Mirê Chagas e tantas outras pessoas que se manifestaram naquela reunião do CUn por isso.
Recomendo fortemente que você ouça o episódio. São só 15 minutinhos:
Saiba mais sobre essa história
Quero aproveitar essa news para reverenciar outras pessoas que não aparecem no Histórias Plurais, mas contribuíram muito para essa conquista, e citar outros dados.
Em 2015, a primeira pessoa trans a usar nome social na UFSC, Patrícia Aguilera, concluiu a graduação. Ela foi a oradora da cerimônia de colação de grau. Naquele dia, Patrícia relembrou todas as dificuldades que enfrentou nos quatro anos em que esteve na universidade (você pode ler na íntegra nessa matéria publicada pelo portal Notícias UFSC). Essa parte particularmente me pegou:
“Eu achava que, quando alguém me olhava, estava zombando. Não penso mais assim”.
Um pouco antes da formatura da Patrícia, em 13 de agosto de 2015, o CUn aprovou, por unanimidade, as modificações na resolução normativa que dispõe sobre o uso do nome social por travestis e transexuais para fins de inscrição no concurso vestibular e nos registros acadêmicos na UFSC. Desde aquela data, os nomes sociais podem ser utilizados por estudantes, docentes, servidores técnico-administrativos em educação e participantes de projetos de extensão em todos os níveis de ensino. Além disso, ficou estabelecido um prazo para utilização do nome social em lista de chamada, após a entrada do processo, que passou a ser de 30 dias, ao invés de ser colocado no semestre seguinte.
Cinco anos antes, em 28 de outubro de 2010, o CUn decidiu que seria garantido, na ficha de inscrição do vestibular, o uso do nome social junto ao “nome oficial” (sic), mas havia uma excessão importante: os diplomas eram emitidos com o chamado nome civil. Na formatura da Patrícia, em 2015, já foi diferente. No diploma dela, e de todas as pessoas trans dali em diante, constava o nome social.
Recentemente, eu conheci outra pessoa muito importante nos debates sobre políticas afirmativas na UFSC: Helena Cortes, a única professora trans da UFSC, que atua como docente no Departamento de Enfermagem há quase dois anos. Em junho desse ano, a Helena passou a integrar um Grupo de Trabalho (GT) da Secretaria de Atenção Especializada à Saúde do Ministério da Saúde especificamente para reelaborar a proposta de cuidado para pessoas trans no âmbito do SUS.
Ah, e se você teve curiosidade pra ver como foi a sessão do CUn que aprovou a política de ações afirmativas para pessoas trans em 2023, pode assistir na íntegra:
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Um beijo,
Stefani